Dos gregos veio o mito de Narciso, jovem incapaz de amar outras pessoas e que morreu pelo seu reflexo em águas paradas. História clara, mas com muito mais recheio metafórico do que aparenta. Inspirou para o termo narcisista já considerado anomalia e até doença, doença essa que nos dias que correm nos afeta a todos. Entre 1910 e 1914, Freud introduz o conceito psicanalítico de narcisismo (o amor excessivo de um indivíduo por si próprio) na base do desenvolvimento infantil e na procura pelo desejo libidinal. Conceito interessante esse que, me acompanhou e a muitos outros, enquanto criança, fazendo-me pensar que a minha pessoa seria literalmente, o centro do sistema solar, como se Copérnico no século XVI se tivesse enganado, como se eu fosse o camisola amarela desta “volta à vida” ou como se fosse a personagem principal deste filme ainda por acabar. Freud e posteriormente Lacan, destacam esta fase do narcisismo como primária, como uma fase natural de intuito constitucional e não criticável. Esta deriva antes da formação do ego e tem como base a ausência de relações objetais. Todo o investimento do bebé/ criança é apenas em si, ao mesmo tempo em que pensa que todas as outras crias conspiram e vivem para o seu bem-estar e elevação. Esse estado paradisíaco de perfeição é corrompido mais tarde quando descobre que, como seus pais e as pessoas à sua volta, está exposto a exigências e problemas. À medida que o tempo passa, a criança perceberá que não é tudo para os seus pais, de que estes também têm outros interesses. Essa perspetiva da criança é, nas palavras de Poulichet (1989): “[…] a ferida infligida ao narcisismo primário da criança. A partir daí, o seu objetivo consistirá em fazer-se amar pelo outro, em agradá-lo para reconquistar o seu amor; mas isso só pode ser feito através de certas exigências do ideal do eu". É dessa forma que a criança entra no segundo estágio de narcisismo, ao qual Freud denominou de narcisismo do ego, porque é retirado dos objetos a partir dos processos de identificação com as figuras parentais ou seus representantes. De modo geral, tanto a primeira como a segunda fase narcisista irá desenvolver a personalidade e acompanhar o indivíduo durante toda a sua existência. Foi a partir do olhar apaixonado e desejoso da mãe, que a criança se reconheceu e se sentiu amada. Daí para a frente, todas as suas escolhas e realizações terão por base esse período em que foi possível o desenvolvimento do amor por si mesma. É esta a fase que Lacan se acaba por debruçar mais afincadamente, a exploração da “mirror stage”, aquando a criança se apercebe, ou começa a aperceber, que não é de todo o centro do universo, ou que, pior ainda, não é tudo para os seus representantes parentais. A partir desta fase, a maior preocupação do sujeito em desenvolvimento é ser amado como já havia sido anteriormente.
Daí surgem os narcisistas em questão neste pequeno texto. Seres apaixonados pela sua própria imagem e que, ao longo da sua vida, tentam reconquistar o afeto dado pelos seus pais noutras ou em todas as pessoas que conhecem. Jean-Jacques Rosseau diz que na mitologia grega Narciso não se apaixonou por si mesmo, mas sim pelo seu reflexo. Acontece que essa imagem jamais poderia constituir um reflexo fiel: ela informa um elemento subjetivamente inexistente. Já aparece distorcida, no mínimo devido à inversão do campo visual a partir da qual o que era direita torna-se esquerda e vice-versa. E que, portanto, ocupa o lugar simetricamente oposto àquilo que é chamado de verdade do sujeito, uma visão irrealista de si mesmo. Podemos também transpor este raciocínio de inversão visual para os dias de hoje, sendo a distorção de realidade as redes sociais que diariamente utilizamos. Vivemos numa pandemia narcísica onde plataformas online são o melhor palco para se autopromover, auto-prosperar e procurar validação para o seu “eu” todo poderoso. “O narcisista depende dos outros para validar a sua autoestima. Ele não pode viver sem um publico admirativo. A sua aparente liberdade de laços familiares e de pressões institucionais não o liberta para ficar sozinho ou glorificar-se de sua individualidade. Ao contrário, contribui para a sua insegurança, que ele só poderá superar vendo o seu ego grandioso refletido nas atenções dos outros ou ligando-se àqueles que irradiam celebridade, poder e carisma.” – Lasch, The Culture of Narcissism. As redes sociais são a ascensão do alter ego, uma realidade construída e idealizada do que pensamos ser, um espelho que nos inverte o sentido da imagem. Este comportamento parece expandir-se como uma praga na sociedade contemporânea não só entre os adolescentes e jovens que inundam as redes sociais. “A desordem narcisista da personalidade – um padrão geral de grandiosidade, necessidade de admiração e falta de empatia– continua a ser um diagnóstico bastante raro, mas as tendências narcisistas estão certamente em alta”, explica a psicóloga Pat MacDonald, autora do trabalho Narcissism in the Modern World. Nos dias de hoje, Narciso não se viria a apaixonar por si mesmo, mas sim pelo seu feed de Instagram religiosamente organizado e colorido, e morreria de desgosto devido à contagem da sua última publicação ter sido inferior à expetativa, afogado em águas de si mesmo. Todos os dias são colocadas 80 milhões de fotografias no Instagram e dão-se cerca de 3,5 bilhões de likes. “Eu a comer”, “Eu na piscina “Eu no bar” - Eu, Eu, Eu. No Facebook milhões de pessoas dão detalhes das suas vidas pessoais ao mundo. A internet (redes sociais) está-nos a tornar não só espetadores passivos, mas também narcisos ansiosos por atenção, obcecados por conseguir seguidores e likes de relevância zero que nos elevem o Egó (grego) traduzido para “eu”. Devemo-nos preocupar com esta realidade banal que assoberba a sociedade dos dias que correm, ou estaremos apenas a enfrentar outro " novo normal" baseado numa plataforma e na crença de que tudo o que fazemos é merecedor de atenção?
Os narcisistas utilizam as redes sociais por estarem convictos de que os outros realmente se interessam pelas suas vidas e é, coincidentemente, seu desejo inato quererem que os outros saibam tudo sobre o seu dia-a-dia, acreditando verdadeiramente que todos os seus momentos publicados são dignos de orgulho e merecedores de pelo menos um post. “O humano é uma criatura narcisista desde que o mundo é mundo” – Sartre Nisto poderíamos culpar a educação, “a cultura americana" (atualmente adotada por quase todos os cantos do mundo) que envolve o conceito de" autoestima exacerbada”, no qual todos os pais se esforçam por assegurar que as suas crias são “especiais”. A “superproteção” que se tem vindo a alastrar por várias casas é então como um vírus, um comportamento tóxico que consome os pais e que faz com que a criança se considere superior aos demais. Na maioria das vezes, as figuras parentais pensam estar a contribuir para um desenvolvimento e construção estáveis da sua autoestima quando, na verdade, estão somente a alimentar o ego de mais uma mentalidade narcísica, de uma criança que passará a maior parte da sua vida à procura de algo ou de alguém que confirme o seu mundo ilusório garantido e prometido pelos seus pais. O importante e a chave de tudo, é o equilíbrio na educação da autoestima. “A autoestima é confundida com o narcisismo. O que é preciso cultivar é a autoestima, que se consegue com carinho, apoio, atenção e limites” – Eddie Brummelman. Narciso acabou por morrer afogado, tenhamos cuidados para não nos afogarmos também. Bibliografia: - Sobre o Narcisismo: Uma Introdução (1914) Sigmund Freud - Mirror Stage (1936 – 1950) Jacques Lacan - Origins of narcissism in children (2015) Eddie Brummelman - Narcissism in the Modern World (2014) Pat MacDonald - Texto de Silve Le Poulichet sobre o narcisismo que veio a integrar as “Lições sobre os 7 Conceitos Cruciais da Psicanálise”, de Nasio (1989) - The Culture of Narcissism (1979) Christopher Lasch - Narciso (1597 - 1599) Caravaggio