Apesar da contemplação silenciosa e solitária da palavra escrita ser tão familiar para nós, nem sempre foi este o caso.
Partimos da tradição oral — por exemplo, a cultura inca peruana conquistou e governou um poderoso império sem o apoio da escrita (tinham um sistema de mensagens através de nós em cordas ou quipus).
Já na Europa, no início da Idade Média, ler era um acto público — falado dentro da comunidade. Lia-se na missa, e a palavra era associada à voz de Deus. Santo Agostinho registou nas suas Confissões que, chegando a Milão no sec. IV, observou as práticas de leitura de Ambrósio, o Bispo da cidade na altura. Para o desânimo de Agostinho, Ambrósio lia sem fazer barulho. Apesar dos seus olhos seguirem o texto, a sua voz e língua estavam em silêncio. Santo Agostinho presumiu que Ambrósio estaria a preservar a sua voz, que era usada frequentemente e estaria rouca.
O hábito seria os leitores monásticos seguirem o texto tanto com os olhos como com os lábios, pronunciando ou murmurando o som da palavra à medida que prosseguiam. Os sons que chegavam eram conhecidos como voces paginarum, as “vozes das páginas”. Quanto mais liam, mais se enchiam as suas cabeças de coros dessas vozes.
Com a industrialização da prensa, esta voz foi-se perdendo e foi entrando o silêncio da linguagem escrita com a nossa habituação à palavra escrita. O leitor de hoje em dia, acostumado a pensar no som como um fenómeno puramente físico, é inclinado a ver estas vozes como frutos da imaginação. Claro, elas não existem mesmo. O que existe são as imagens do som da voz — a sua substância física — e o seu ideal na mente. É interessante pensar que esta divisão entre a materialidade do som — a sua substância física — e a sua representação ideal, são construções modernas muito bem definidas por Saussure.
A questão seria: será que o clérigo medieval ao seguir as escrituras na página, seguindo com os seus olhos e murmurando ao mesmo tempo, não estaria a sua mente igualmente inundada de vozes se as palavras lhe tivessem sido lidas?
No entanto, ele só ouve as palavras porque já as ouviu antes — cantadas ou faladas — e essa reiteração deixou marcas na consciência aural e muscular. Ler, então, não seria apenas ouvir, mas lembrar. Se a escrita fala, fá-lo com as vozes do passado, as quais o leitor ouve como se existisse no meio delas.
Bibliografia:
INGOLD, Tim - Lines: A Brief History. Milton Park, 2007.